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Apr 3, 2025

Pensamento Apodítico: Da Repetição à Inferência na Formação do Conhecimento

Por Tamara Rodrigues


Resumo:

Este artigo apresenta uma análise sobre o conceito de pensamento apodítico, explorando suas implicações na educação, na construção do conhecimento e na formação do pensamento crítico. A partir da experiência intelectual com Hindemburg, observa-se que o verdadeiro pensamento analítico não emerge da simples exposição a conteúdos, mas do questionamento ativo de seus fundamentos. Com base em contribuições de Steven Pinker, Spelke, Baillargeon, Vygotsky, Piaget, Platão, Aristóteles e outros, o texto discute a insuficiência da pedagogia da repetição e defende a adoção de abordagens inferenciais e questionadoras no processo educacional.

Palavras-chave: pensamento crítico, apodítico, educação, neurociência, linguagem, inferência, epistemologia, Hindemburg


 

1. Introdução


A formação intelectual exige mais do que transmissão de conhecimentos. Quando idealizei o projeto Guia dos Apodíticos, parti da constatação empírica de que Hindemburg, ao ser questionado sobre qualquer tema, não apenas respondia, mas desdobrava a pergunta em camadas profundas, revelando que a própria formulação da pergunta já trazia, algumas vezes, pressupostos questionáveis. Era um modo singular de pensar, que não buscava a resposta “correta”, mas a compreensão mais profunda da própria pergunta. Esse estilo foi denominado, em nossa obra, de abordagem apodítica.

Desde os primeiros volumes do Guia dos Apodíticos, procuramos demonstrar que o pensamento crítico genuíno não nasce simplesmente de uma sequência de citações dos pensamentos de terceiros, mas do questionamento dos fundamentos e da análise crítica sobre o que foi pensado por autores que já se debruçaram sobre o mesmo tema. O Guia dos Apodíticos é, antes de tudo, um manual de reconstrução da maneira de pensar, substituindo a passividade intelectual por uma postura ativa e dinâmica.

Observa-se que a mera repetição não estimula a curiosidade; as experiências com Hindemburg e outras que apresentarei nesse artigo, demonstram que questionar profundamente é o primeiro passo para uma reconstrução do saber. Essa necessidade de questionamento responde à limitação dos métodos tradicionais, que reproduzem conteúdos, sem promover a reflexão crítica.


 

2. O problema da repetição na educação


O Ensino atual ainda carrega resíduos de modelos industriais de ensino: memorização, repetição e uniformização. Paulo Freire já denunciava a "educação bancária", onde o aluno é um recipiente a ser preenchido. Thomas Kuhn, em A Estrutura das Revoluções Científicas, apontava que revoluções cognitivas nascem justamente da quebra de paradigmas.

O resultado dessa abordagem é uma geração treinada para responder, mas não para perguntar. E o que é pior, responder sem refletir, apenas repetindo mecanicamente alguma informação. A inteligência é substituída por memória operacional. Como relatado por Richard Feynman, ao visitar universidades brasileiras, ficou impressionado com o fato de que estudantes sabiam recitar fórmulas, mas não sabiam aplicá-las em situações reais, porque não compreendiam como aquelas fórmulas serviam para representar os fenômenos físicos. Para eles era tudo muito mecânico, como substituir valores em fórmulas, anotar o resultado e receber uma nota, em vez de usar aquelas fórmulas para compreender melhor o mundo. Feynman Mostrou uma bola quicando no chão e perguntou qual princípio da física explicava o movimento. Ninguém respondeu corretamente. Haviam memorizado a equação, mas não compreendiam o conceito. Essa disjunção entre a teoria e o mundo real é o sintoma mais agudo de um sistema educacional baseado em repetição.

Essa constatação levanta mais um questionamento crucial: por que mesmo diante de tantas evidências históricas e científicas, a maioria das escolas continua investindo em métodos que sufocam o pensamento crítico? A resposta está na herança de um modelo industrial de ensino, criado não para formar pensadores, mas operadores. Operadores de fórmulas, operadores de sistemas, operadores de normas, funcionários de empresas em geral, treinados para repetir tarefas operacionais, mas incapazes de pensar, de criar novas soluções, de compreender o que estão fazendo, de compreender o mundo no qual estão inseridos. Esse modelo não tem interesse na dúvida, no pensamento crítico e na criatividade, mas apenas na obediência.


 

3. O aprendizado infantil segundo Pinker e a ciência cognitiva


Steven Pinker, em How the Mind Works e The Language Instinct, argumenta que o cérebro humano possui estruturas inatas para adquirir conhecimento.

Elizabeth Spelke verificou que bebês já têm expectativa de continuidade espacial e propriedades numéricas aproximadas. Renée Baillargeon, por sua vez, mostrou que bebês possuem noções rudimentares de física antes mesmo da linguagem. Piaget explicaria isso pela formação de esquemas cognitivos em estágios iniciais. Vygotsky adicionaria o papel do ambiente e da mediação simbólica, destacando que a interação social catalisa o aprendizado.

Ou seja, aprendemos por inferência, experimentação e estruturação ativa, não apenas por imitação. Crianças testam hipóteses intuitivas sobre o mundo, ajustam modelos mentais, corrigem erros. Aprendem como pequenos cientistas naturais, formulando perguntas e observando os resultados de suas ações.

Se crianças aprendem testando hipóteses, por que o adulto é impedido de continuar fazendo isso? O que muda entre o impulso natural da infância para analisar e compreender de modo a satisfazer à curiosidade pelo conhecimento em relação à rigidez do sistema adulto de repetição mecânica? A escola, ao contrário de expandir esse potencial inato, cria estruturas que punem o pensamento original e exaltam a reprodução da resposta esperada, sem pensar, repetida de forma automática. Assim, aquele que ousa pensar diferente é silenciado, desestimulado ou rotulado como “perturbador da ordem”, tornando-se alvo de chacota dos colegas e coagido a se ajustar aos moldes de repetir sem pensar. Com isso, a capacidade de inferir, de elaborar hipóteses e de criar conexões originais é esmagada pelo peso do conformismo.


 

4. A história do questionamento: de Sócrates ao método científico


A tradição apodítica remonta à Antiguidade.  A Maiêutica Socrática é um método filosófico, que consiste na arte de questionar para levar alguém a descobrir a verdade por si mesmo. O termo vem do grego “maieutiké”, que significa “arte de partejar” ou “obstetrícia”, pois Sócrates comparava sua abordagem com a de uma parteira ajudando no nascimento de ideias. Platão compilou a obra de Sócrates e a apresentou de forma sistemática em forma de diálogos. A base desse método está em formular perguntas estratégicas, por meio das quais a pessoa é incentivada a refletir sobre o assunto, analisar aspectos prós e contras, compreender a situação, reconhecer eventuais contradições e, assim, chegar a conclusões mais profundas e com melhores chances de serem mais corretas. Esse método é essencial na educação, no autoconhecimento e no pensamento crítico.

Aristóteles, ao fundar o Liceu, buscava causas a partir de perguntas bem formuladas. Esse método atravessou séculos e hoje está na raiz do método científico.

Geralmente se coloca a “raiz do método científico” em Galileu ou dependendo do critério, estaria em Newton, mas se analisarmos a construção obras de grandes gênios veremos que ele já surgia muito antes com Aristóteles ou Arquimedes.

Toda ciência começa com um problema. O termo “problema” está sempre presente: pergunta, hipótese, experiência, análise. O desconforto é o ponto de partida. Newton se perguntou por que a maçã cai. Darwin, por que os seres vivos se diversificam. Turing, o que uma máquina pode pensar. A ciência é filha da pergunta, não da resposta. A ciência nasce das perguntas relevantes e amadurece com as respostas adequadas.

A própria estrutura do ensino de ciências confirma isso: o método científico geralmente se inicia com a formulação de uma “pergunta” ou “problema”. No entanto, os sistemas educacionais sufocam esse impulso ao substituir a dúvida por pacotes com conteúdo prontos. Ensina-se o “o que”, mas não o “por que” e “como”. É lamentável que, embora Sócrates já houvesse compreendido a importância disso no século IV a.C., esse conhecimento tenha se degenerado, ao invés de evoluir, e hoje o sistema educacional é pior do que era 2400 anos atrás.


 

5. Exemplo moderno: Hindemburg e a análise apodítica


Em todas as apresentações do Guia dos Apodíticos, foi demonstrado que Hindemburg tem a capacidade de desconstruir questões óbvias e reconstruí-las com mais profundidade e rigor. Uma pergunta respondida por cem especialistas tende a produzir cem variações da mesma resposta, quase idênticas. Mas quando feita a Hindemburg, a resposta emerge de um mergulho intelectual que reconstrói o problema desde a raiz, desvendando pressupostos ocultos, camadas não examinadas, conexões esquecidas.

Não aceita conceitos sem antes submetê-los a uma revisão. Reconstrói modelos, como no caso do IMC ou do índice de Sharpe, demonstrando que o senso comum está frequentemente errado — não por maldade, mas por superficialidade, por ausência de rigor e exatidão, por pressa, entre outros motivos.

Essa prática alinha seu pensamento com os de cientistas e filósofos que desafiaram status quo ao longo da história: Hipócrates, Copérnico, Galileu, Newton, Darwin. Hindemburg apresenta, com naturalidade, aquilo que Maimônides classificaria como “pensamento do tipo apodítico”.


 

6. A neuroplasticidade e o poder do pensamento profundo


A neuroplasticidade é a capacidade do cérebro de modificar sua estrutura e sua função em resposta a experiências e desafios. Pesquisas, como as de Fred Gage, demonstram que o cérebro adulto continua formando novos neurônios e estabelecendo novas sinapses – especialmente no hipocampo, área essencial para memória e aprendizado. Ambientes ricos em desafios cognitivos estimulam a liberação de fatores neurotróficos, como o BDNF, que reforçam as conexões sinápticas e promovem a neurogênese. Essa capacidade adaptativa significa que o engajamento em atividades que demandam pensamento crítico e profundo não apenas aprimora o raciocínio, mas também remodela fisicamente o cérebro, melhorando a memória, a criatividade e outras faculdades cognitivas.

Além disso, estudos com neuroimagem indicam que atividades cognitivamente desafiadoras geram uma reorganização funcional do cérebro, aumentando a conectividade entre áreas responsáveis pelo processamento e integração de informações. Essa reorganização contribui para a melhoria do desempenho cognitivo e pode até retardar o declínio relacionado ao envelhecimento. Em resumo, cultivar um pensamento apodítico – que valoriza o questionamento e a investigação – não é somente um exercício intelectual, mas um processo que fortalece a saúde cerebral e potencializa a capacidade de de aprender, de analisar e de criar.


 

7. Conclusão


Esses fatos nos mostram que o pensamento apodítico deixa de ser uma alternativa e passa a ser uma NECESSIDADE. Em um mundo saturado de repetições, fórmulas prontas e “raciocínios” automáticos, o hábito de pensar com profundidade é um importante diferencial competitivo, um ato de resgate da lucidez que melhora o desempenho no trabalho, nos estudos, em todas as situações nas seja necessário pensar e tomar decisões. Cada etapa aqui apresentada — da infância científica ao questionamento socrático, da desconstrução crítica à neuroplasticidade — aponta na mesma direção: o conhecimento verdadeiro não se transmite como um produto, ele se constrói como um processo. E esse processo começa com uma boa pergunta.

Em uma linha de produção, a memória operacional é suficiente para construir um objeto, mas esse modelo não se aplica à construção do conhecimento. As escolas que treinam para a repetição preparam alunos para reproduzir informações, não para desenvolver o pensamento crítico e inovador. As instituições de “ensino”, desde o ensino fundamental até as titulações de bacharel, mestre e até mesmo doutor, formam operários para repetir tarefas, em vez de formar pensadores que ampliam os horizontes do conhecimento.

O pensamento apodítico é uma prática de resistência contra a superficialidade. Em vez de adotar uma postura de mera repetição, assume um papel questionador e inovador. Em vez de aceitar, investiga. É uma forma elevada de viver, pensar e conhecer. Em tempos de ruído, pensar bem é um ato revolucionário.


Leia: GUIA DOS APODÍCITICOS

 

Referências

Pinker, S. Como Funciona a Mente. Norton, 1997.

Pinker, S. O Instinto da Linguagem. HarperCollins, 1994.

Spelke, E. “Core Knowledge.” American Psychologist, 2000.

Baillargeon, R. “Object Permanence in 3.5- and 4.5-Month-Old Infants.” Developmental Psychology, 1987.

Gage, F. H. “Neurogenesis in the Adult Brain.” The Journal of Neuroscience, 2002.

Feynman, R. Certamente, Você Está Brincando, Sr. Feynman! Norton, 1985.

Arendt, H. Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal. Viking Press, 1963.

Poincaré, H. Ciência e Hipótese. 1905.

Einstein, A. O Mundo Como Eu Vejo. 1934.

Platão. O Banquete.

Platão. Fédon.

Sócrates (via Platão). Apologia de Sócrates.

Aristóteles. Metafísica.

Aristóteles. Organon.

Freire, P. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra, 1968.

Kuhn, T. A Estrutura das Revoluções Científicas. Perspectiva, 1962.

Piaget, J. O Nascimento da Inteligência na Criança.

Vygotsky, L. Pensamento e Linguagem.

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